rabiscos, rascunhos, fragmentos de uma escrita atravessada

Foi nessa sala que minha cabeça rachou mais uma vez. Rachou diante da questão enunciada por Júlio Nlongi corpo-texto. Excitante é ter uma cabeça quebrada. O sol na cabeça, o sol quebrando. “Quem é esse nós?” Quebra a cabeça. Talvez, quebrar cabeças seja uma trilha aberta para o próprio corpo. Talvez. Mas isso é outra história e não é. Escutar e enunciar e quebrar e encarnar e...eu acho que é sobre esses verbos que eu desejo falar aqui. Falar dessas coisas todas misturadas, juntas, uma a uma. E falar como uma mulher branca nesse tempo é dizer também que eu sou descendente de imigrantes trazidos para “colonizar” as falaciosas terras “devolutas” do Brasil.

Cara de índio - Djavan (1978)

Eu sou branca, bisneta de uma política pública de branqueamento do Brasil, neta de uma repetição que eu não quero mais repetir, filha da repetição e do privilégio de não precisar me fazer uma questão como essa: “Nós?” Quebra a cabeça. Enquanto essa metáfora age um sujeito passeia inquieto e nervoso. Não tenho pra onde correr e não quero correr repetindo a evocação desse “nós” que me mantém fora do tempo, fora de mim e da minha responsabilidade por tal enunciação - nós – nós? Nós já virou outra coisa e não quer mais sair da boca pra fora. Eu, uma mulher branca vivendo no próprio tempo que não é possível não fazer nada com isso.


Dessa maneira, certas experiências encarnadas - colher café, plantar pepino, fazer uma composteira – é herança de um lugar de privilégio. Essa herança é incontornável e me bater com ela passa por me perguntar como fazer daqui em diante. Fazer outras parecenças é vital. Sentindo isso, a metáfora, a imagem da minha cabeça em pedaços diante de nós – de quem? - não dá conta, não é suficiente, ou seja, é preciso que eu deseje mais do que uma aproximação com a quebrada preu viver o próprio tempo. 

"A Luta Contra A Lata Ou A Falência Do Café" - Gilberto Gil (1968)

O povo Ava Kayowá diz que palavra é “palavra que age”. Botei reparo que as palavras estão penando para agir, parece haver um certo cansaço, estão um tanto judiadas

e a linguagem me tomba, sinalizar que a linguagem tomba, escrever que a linguagem tomba, ser alertada pelas manas que a linguagem me tomba. Re-escrever. As palavras estão um tanto gastas, representadas, fixadas. Porém, se eu não quero repetir, não vou eu aqui falar por elas. Repetindo: se a palavra é palavra que age o que eu vou fazer com isso? A minha aposta, pois já passou da hora de eu apostar para perder. Não. Não é perder, não é ganhar, não é sobre isso, pois nunca se ganhou nada. É mais sobre arriscar, então arrisco deixar o “nós” morrer (deixar as palavras morrer). Mais do que quebrar minha cabeça, a questão é como eu vou fazer para esse “nós” virar outra coisa e não sair mais da boca pra fora. Deixar morrer custa. Assim, adio a intervenção por aí, pois estive afastada da morte e sinto que quero me aproximar dela de outras maneiras, diferente do jeito que herdei. A morte é custosa! Enquanto isso, vou por ali, atravessando (en)carnada. Sem disfarces. Com dificuldades. 

Sem corpo não tem boca. Sem boca como tirar a palavra da boca? Sem boca como colocar a palavra para a boca? Como fazer sem a boca? Como travar a boca na hora da palavra sem boca? Como fechar a boca sem boca? Como inventar a boca sem boca? Como quebrar a boca sem boca? A boca quer encarnar a boca e não dizer coisa da boca pra fora. 

Boca e palavra e linguagem e...se é por esses rastros que eu sigo arriscando é porque desconfio que é por eles que eu vou fazê-las (re)agir. Tudo que eu escrever nada vai valer. Sem boca. Tudo ou nada são grandes por demais e não importa. O desejo é deixar morrer palavras. Deixar morrer é pelejar com muitas coisas misturadas uma a uma. Deixar morrer como faz o pé de tomate, eles vão dando e secando, de longe, os frutos vermelhinhos e aquela cor dourada das folhas indo, juntas, uma a uma. E mesmo não entrando com a morte aqui a morte é vida e é pela escrita que quero me aproximar dela e o que eu escrever não vale nada sem boca. Não valendo nada, vale um pouco, com boca encarnando mula sem cabeça. Então como faço para o nós morrer e não sair da boca pra fora, me pergunto. 

 
                                              

Invento. Quando a palavra que age falta, a minha tentativa será (re)inventar. Criações misturadas uma a uma não desejarão ser tudo ou nada, apenas passarão por caminhos de formiga abrindo jeitos de dançar na boca, maneiras de compartilhar a potência criadora com aquelas cansadas e aí, talvez, estará uma brecha para a respiração. Não é por nada que eu faço da invenção a mediação por aqui, mas porque é nesse nó que quero fazer passar a experiência com a boca de atravessar as frestas dessa coisa que me é tão cara: a palavra. Mas me lembro que, se me arrisco por aí, pelos buracos, é que há algum tempo eu compartilho o vivido com o sem nome e tateio o incerto. A escrita não dá conta da potência desse encontro e me encontrar com a escrita é inescapável.   

 

Em algum momento disso que me aconteceu e que aconteceu para cada uma, uma a uma. Em algum momento no quintal da casa eu imaginei como seria retornar a essa sala, eu, meus ouvidos, minha boca, minha cabeça rachada e meu corpo encarnado. Não é aula, não será aula, não pode ser aula, tem que ser outra coisa. Meu querer-querer. E essa outra coisa talvez passe pela memória coletiva da experiência de cada uma, uma a uma diante desse acontecimento. Ouvindo e falando, ensaiando sobre como lidar juntas, uma a uma, com a composição de algum presente. Escrevo para me lembrar que é sobre quases e não sobre todos sem buracos de tatu. O assunto para ouvir tem que falar. A escuta daquilo que, muitas vezes, não dá conta de ser enunciado. A única coisa que não pode acontecer no retorno a sala é o retorno a sala. As palavras às vezes me enredam nelas! Eu me enredo por elas e elas se aproveitam de mim e do meu jeito de tiete! Me fazem esquecer que muita coisa importante falta nome. Mentira. Sou eu, mais do que as palavras, sou eu. Por essas e outras que é tão custoso por-tirar-quebrar-re-inventar boca. O que direi então de dançar-brincar-jogar-gingar-boca? Direi que é mais custoso ainda. Entrar com palavra para sair da boca pra fora não parece bom para muita coisa, parece um problema apagado, não pela boca. Esses nomes, essas palavras vão firmando o pé na linguagem, querendo, fazendo, realizando a própria linguagem fora dela. Pode ter sido assim, que o "novo" e o "normal" entraram pelas bocas. O "novo" e o "normal" também entraram pela boca da Universidade e como eles saem não vai bem. Não sei como, mas sinto que reproduzem apagamentos. Sinto que me quebra, me violenta, me apaga. Gostaria de escutar sobre como agem essas palavras em cada uma. "O novo normal". Talvez eu volte a isso outra hora. Não é preciso dar conta de tudo.

Agora vou voltar atrás. Veja, voltar atrás não é ir atrás. Me encontrar com a herança incontornável que já não é possível não fazer nada e insistir. Insistir em não usar palavras antigas para dizer coisas sem nome que passam por mim hoje. Insistir em imaginar uma boca para dar conta do meu tempo. Passar pela boca da mula sem cabeça é passar pelo corpo. A língua é mesmo uma desgraça. Aposto em tentar fazer a boca passar pela boca. Mas esse lugar da enunciação, ah esse lugar, não é simples. Naquela manhã, no gramado da música – quando faltar, porque falta, então passar pelo buraco de tatu com um causo, com uma história, uma experiência, narrativa, lembrança. Na falta, delirar, não para preencher, mas para fazer caminho. Delirar com a terra. Fazer caminhos outros com a boca, é disso que se trata também. Esse movimento de fazer caminhos com a boca é um desejo que ainda não sei falar, nem escrever, nem fazer e estou fazendo. Naquela manhã também houve uma intenção de cura ao ser tocada pelo corpo-voz:

 


Desejo. Intenção. A cura passa pelo corpo (des)encontrado. (In)tensionar. Para cada uma, uma a uma, há de haver. Imaginar o encontro com o próprio corpo. Corpo-voz-texto. Lentamente. Repetir. Repetir. Desfazer e refazer gestos. Criar a cura a sua maneira. Se abraçar. Cons-pirar.

Gostaria de me aproximar desse tema por outro caminho. Esse outro caminho seria um pouco menos grandioso que pensar no diálogo entre diferentes mundos, quero falar de algo mais próximo. Assim, vou partir de uma questão que eu já me coloquei muitas vezes durante a travessia e agora ela aparece um pouco diferente, a partir da conversa com alguém que me parece muito próximo mesmo estando muito distante. O que fazer? O que eu tenho feito para re-compor diálogos com alguém? Me parece que todo tanto é pouco diante da urgência de não repetir certas heranças que re-produzem violência e apagamentos, que espatifam o outro. Eu como mulher branca e privilegiada tenho feito muito pouco, no sentido pragmático. Nos textos até aqui identifiquei um desejo muito forte de Gersem Baniwa, Tonico Benites, Felipe Tuxá em re-compor diálogos, em fazer pontes, em quebrar divisões a partir da própria experiência. Vejo na universidade um movimento fortíssimo para romper com o epistemicídio. Eu mesma tenho feito quase nada. Então eu quero falar aqui um pouco dessas heranças incontornáveis, heranças tutelares, colonizadoras, patriarcais. Ao mesmo tempo que sou herdeira, me interessa fazer algo com isso e escrever a esse respeito nesse fórum de discussão, por exemplo, é uma tentativa de não repetir o que herdei. Já adianto que possivelmente eu não dê conta de expressar muitas coisas aqui nessa escrita. Pensando no meu desejo de re-construir pontes com alguém que vive diferente de mim e passa por experiências violentas que eu nunca passei, o que fazer? O que fazer é questão passada. Como fazer? Essa é a questão que tem me consumido, me atravessado e pensando nisso há outra pergunta: quais discussões não podem ser adiadas para seguir adiante? Bem, me parece que qualquer re-composição que eu tente fazer juntas, uma a uma, será necessário escutar, ouvir do outro violentado, partido, quebrado, se há alguma violência que está sendo reproduzida e repetida na prática mesma da tentativa dessa re-composição. O que quero dizer é que eu não posso tentar fazer conversa com o outro, se a partir dessa conversa, um outro alguém está sendo violentado. Se a minha conversa com alguém quebra um outro é preciso re-começar. Ficar atenta com os nós entrelaçados que estou desfazendo e os nós que estou refazendo, porque talvez eu não esteja refazendo nada além de repetir violências, de reatualizar heranças.

 "chegadas" - vídeopoema Renata Pelegrini (2020)

Insistir. Repisar o paladar da mula sem cabeça. Buscar outros paladares para a boca encarnada na boca. Para onde a boca volta? Retrogosto. Voltar a nenhum lugar. Re-conhecer que os lugares que a volta dá são desconhecidos. Encarnar e voltar a eles, aos lugares desconhecidos na insistência de outras maneiras de retornar o gosto.


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